sábado, 3 de maio de 2014

# 4 - A Transcendência Homem-Máquina de Ayrton Senna

O assunto Ayrton Senna não é exatamente uma unanimidade. A maioria das pessoas com quem conversei nos últimos dias não podia importar-se menos a respeito. Entre os mais entusiastas, os 20 anos de sua morte trazem memórias envoltas em nostalgia. O que não se pode discutir, entretanto, é o status de lenda que Ayrton Senna possui. E não é nada que tenha a ver com ufanismo patriota pintado pela Rede Globo, mas sim pela sua capacidade de atingir o ponto extremo de seus limites. Saiba mais sobre a vez em que Senna, segundo ele mesmo, experimentou um momento de transcendência dentro do cockpit.


por Carlos E. Werlang

Em um trecho do documentário Living in the Material World, dirigido por Martin Scorsese em 2011, o antigo piloto escocês Jackie Stewart tenta traçar um paralelo entre a sobrenatural habilidade dos sentidos superaguçados de um guitarrista como George Harrison e de um piloto de F-1. Ao longo dos anos, George mencionou algo similar em entrevistas de rádio, quando descrevia o sentimento que tinha ao ver seus amigos Ravi Shankar e Eric Clapton tocarem ao vivo.

Stewart disse, “Você anda muito rápido. Você está no limite absoluto dos pneus e da suspensão do carro, e você está lá bem na ponta do seu próprio limite, levando-o ao ponto mais extremo. Quando isso acontece, seus sentidos são muito fortes.” E depois continuou sobre a vez em que seus sentidos estavam tão exagerados e afiados, que em milissegundos ele teve a percepção de alguma coisa estava errada em um ponto da pista. Isso o levou a frear o carro e constatar que outro piloto havia saído da prova.

Este tipo de percepção parece ter sido sentida de um jeito bem esquisito pelo piloto mais sobrenatural que a F-1 já teve. E note que essa não é mais uma daquelas discussões sem fim para eleger quem era o melhor piloto do circo.

O Grande Prêmio de Mônaco, como a maioria sabe, é o mais charmoso entre todos os demais da temporada de F-1. Não é uma coincidência que seu maior vencedor ainda seja Ayrton Senna. Das dez corridas que fez em Monte Carlo, Senna venceu seis. O que pouca gente comenta, é que por muito pouco, ele quase ganhou outras duas vezes. A primeira quase vitória veio em seu ano de estreia, em 1984, numa prova que ficou gravada na história como “A Francesada”; Senna não teria muitas dificuldades em ultrapassar, debaixo de chuva, o líder Alain Prost, caso a prova não tivesse sido interrompida.

No início do mesmo ano, quando Ayrton Senna terminou a sua primeira prova, ele foi diretamente ao hospital. O esforço físico tinha sido demais para o então franzino piloto. Os anos a seguir viram a transformação de um piloto fracote e magricela em uma máquina física e mental. Seu poder de concentração foi raramente igualado na F-1. Sendo assim, quatro anos mais tarde, ele conseguiu o que muitos chamaram de “a volta perfeita”.

O palco era mais uma vez, as ruas de Monte Carlo, no principado de Mônaco. Senna ainda não era campeão mundial e corria pela primeira vez pela McLaren. Seu companheiro era outra lenda da Fórmula 1, Alain Prost. A complexidade da relação entre Senna e Prost não será discutida aqui, por ora basta dizer que superar Prost era o principal objetivo de Senna. E foi o que aconteceu durante a qualificação que definiria as posições do grid de largada.

Alain Prost havia sido o mais rápido em boa parte do fim de semana. A essa altura, já sendo bicampeão mundial, provavelmente era o favorito para conseguir a pole. Eis que Senna, ao final dos treinos, começa a fazer volta mais rápida atrás de volta mais rápida, batendo o recorde da pista a cada vez que cruzava a linha de chegada. Prost conta que era impossível de se acreditar. Mais tarde Prost contaria o que Senna disse à imprensa naquele dia, “que ele elevou-se acima do carro, e de cima observou como o carro reagia e então entendeu o que estava errado, voltou para o carro e correu a volta perfeita.” Algo que, segundo Prost, foi muito difícil de ouvir e entender.

Nas palavras do próprio Senna, o que aconteceu foi que, “Eu já estava na pole. Então, baixei meio segundo, e depois um segundo e continuei melhorando meu tempo. Eu continuei e continuei e continuei. De repente, eu estava a quase dois segundos de todos os pilotos, inclusive meu companheiro de equipe. Eu percebi que não mais dirigia o carro conscientemente. Eu estava dirigindo por instinto, estava em uma outra dimensão; como se estivesse em um túnel, o circuito todo era um túnel. Eu estava muito acima do limite mas era capaz de melhorar ainda mais... Então eu acordei e me dei conta de que estava em outro lugar. Imediatamente, eu diminuí, e voltei lentamente aos boxes, e encerrei o dia. Fiquei com medo porque estava muito acima do meu entendimento consciente.”












No dia seguinte, aconteceu de novo. Desde a largada, Senna havia disparado na frente e conseguiu abrir uma diferença de quase 1 minuto para seu companheiro Alain Prost. Preocupada com o que pudesse acontecer, a equipe transmitiu uma mensagem pelo rádio pedindo para Senna ir mais devagar, já que estava a pouco mais de 10 voltas do fim. Isso o desconcentrou e logo ele bateu na entrada de uma curva, deixando escapar mais uma oportunidade de vitória no principado.

Em uma entrevista à revista Playboy, em 1990, ele falou novamente sobre sua experiência. “A distinção entre o homem e a máquina deixou de existir, me fundi com o carro, viramos a mesma coisa.” E em outra entrevista, contou que “Naquele dia, eu disse para mim mesmo, ‘atingi meu máximo, não é possível ir além’, Eu nunca atingi essa sensação outra vez.”












Ayrton Senna ficará para sempre lembrado pela carreira vitoriosa e as atitudes que o fizeram um grande campeão, mas foi em uma derrota que ele experimentou a sensação única da transcendência piloto e máquina, uma história repleta de sutilezas.

Os vídeos abaixo mostram imagens preciosas e impressionantes de Ayrton Senna naquele final de semana em Mônaco, em 1988. O primeiro, de um documentário de 2011 que explora justamente o lado sobrenatural (na falta de outra palavra) do piloto. O segundo, uma grande homenagem feita pela equipe McLaren para os 20 anos de sua morte.



segunda-feira, 31 de março de 2014

# 3 - Soul Survivor, os Rolling Stones


Enquanto os Beatles desfrutavam da boa vontade de quase todo mundo, coube aos Rolling Stones pagar o preço por terem sido apresentados como uma antítese suja e pulguenta. Claro que os próprios contribuíram muito para que essa imagem fosse propagada, fato que não os ajudou em nada na hora de arcar com as consequências. Embora essa não seja uma história nova, ela na maioria das vezes é contada recheada de clichês. Saiba com mais detalhes como os Stones sobreviveram à má vontade, pancadarias, prisões e até a morte, e passaram de uma banda desprezada ao maior espetáculo da Terra.














por Carlos E. Werlang

O responsável pela impulsão da jovem carreira dos Rolling Stones foi o astuto produtor londrino Andrew Loog Oldham. Ele havia trabalhado diretamente com Brian Epstein e os Beatles no início de 1963, e também esteve envolvido na promoção da primeira excursão de Bob Dylan à Inglaterra no mesmo ano. Esse era o seu histórico quando, em meados de 63, foi até o clube Crawdaddy, em Richmond, e viu os Stones tocar pela primeira vez.

Naquela época, a banda ainda era liderada por Brian Jones e o pianista Ian Stewart. Mas isso não duraria por muito tempo. Sendo um pouco mais velho que os demais, Stewart logo foi sacado por Oldham. O próximo passo seria um contrato de gravação. A Decca Records já havia cometido o bizarro erro de rejeitar os Beatles no ano anterior, porque segundo o gerente da gravadora, Dick Rowe, bandas com guitarras estavam com os dias contados. Desta vez, não precisaram pensar duas vezes.
Ian Stewart e os Rolling Stones














Existe uma conhecida história de que George Harrison teria indicado os Rolling Stones para Rowe depois de os Beatles terem assistido uma apresentação e os conhecido em Richmond. Foi Andrew Oldham, entretanto, quem efetivamente assegurou aos Stones seu primeiro contrato de gravação. Entre os termos, estavam itens que os Beatles não tinham direito em seu contrato com a EMI, como valores mais altos para os royalties, total controle artístico e propriedade das gravações, e a não obrigatoriedade de usar os estúdios da Decca.

Convencido de que John Lennon e Paul McCartney haviam tornado o negócio de compor canções lucrativo, Oldham trancou Mick Jagger e Keith Richards numa cozinha, para sair apenas quando tivessem uma canção. Na biografia Vida, Keith Richards conta que Andrew Oldham pensava que se Mick Jagger era capaz de escrever cartões postais a uma namorada e ele era capaz de tocar guitarra, então eles conseguiriam escrever músicas. Mas não antes de gravarem uma versão de ‘I Wanna Be Your Man’, escrita por Lennon e McCartney, assegurando assim seu primeiro Top 20 na Inglaterra. O primeiro single escrito por eles a chegar ao topo das paradas saiu no início de 1965, ‘The Last Time’. Com isto, a liderança de Brian Jones foi pouco a pouco sendo trocada pela a da dupla Jagger e Richards.
Keith e Andrew Loog Oldham




















Ao se dar conta que eles não se conformariam num formato Beatle, Andrew Loog Oldham decidiu que os Stones deveriam comportar-se como a antítese dos Beatles – nada de artificial aqui, pois Oldham teve o insight apenas os observando. Se os Beatles eram os heróis, os Stones seriam os vilões; foi daí que surgiu a infame pergunta “Você deixaria sua filha casar com um Rolling Stone?” É importante notar que na época muita desta rivalidade era pura propaganda – havia até um acordo mútuo entre os dois grupos dizendo que eles só lançariam singles e discos em datas alternadas, nunca competindo entre si.

A partir daí, sempre que possível, os Rolling Stones seriam vistos cuspindo insultos, agindo de maneira inapropriada e, ao menos aos olhos do showbiz, fazendo tudo errado. Como os Beatles eram queridos por quase todo mundo, ficou fácil para os Stones chocar e desagradar. Um jornal até escreveu que eles eram tão sujos, que era possível contar as pulgas pulando de suas cabeças. Um episódio bem conhecido é a apresentação que Dean Martin fez dos Stones em sua primeira aparição na TV americana. Martin fez piada com o nome da banda, o comprimento de seus cabelos, e anunciou a estreia dos Stones em frente de uma plateia pouco entusiasmada.

O single seguinte resultou no primeiro sucesso internacional. Quando ‘(I Can’t Get No) Satisfaction’ foi lançado no meio de 1965, liderou as paradas do Reino Unido e dos Estados Unidos. O timing perfeito do protesto cínico contra a “informação inútil que deveria disparar minha imaginação” levaram os Stones à influência contemporânea da época. Com o resultado, eles realmente chegavam a outro nível. Nas palavras de Mick Jagger, o sucesso de ‘Satisfaction’ “os transformou de apenas outra banda pequena em uma banda enorme e monstruosa.”

Assim como os Beatles antes deles, os Stones haviam entrado no frenético circuito de apresentações. E depois de tanto tempo na estrada, as performances lideradas por Jagger, Richards e Jones, mais Bill Wyman e Charlie Watts começaram a ficar caóticas. E se de certa forma os Stones experimentavam sua própria mania, ela ultrapassava limites de bom comportamento. Sua música incitava tamanha violência nos jovens reprimidos que estes se juntavam e desafiavam a polícia. Quanto mais a leste seguiam, mais problemas enfrentavam. Em setembro de 1965, os Stones tocaram em Berlin, o último de cinco dias de apresentações. Depois de apenas 20 minutos o show foi interrompido. A plateia lutou contra a polícia pelo controle do teatro, destruindo os assentos e extintores de incêndio. Berlin ficaria vários anos sem receber shows de rock. Conta-se que foi essa a noite em que Brian Jones conheceu Anita Pallenberg.


















O primeiro álbum feito todo de canções escritas por Jagger e Richards foi Aftermath, seu quarto disco, lançado em abril de 66. O quinto, Between the Buttons, veio um ano mais tarde. Os Stones experimentavam grande aceitação com seus discos e singles. As originais Jagger-Richards, temperadas com o peculiar estilo de tocar de Brian, seus instrumentos e sons exóticos, garantiram seu lugar na história como o final da fase inicial dos Stones. De maneira simbólica, Buttons é o último disco produzido por Loog Oldham.

Quando Jagger e Richards foram presos em fevereiro de 67, as drogas certamente não eram novidade. George Harrison e John Lennon, por exemplo tomavam o temido lisérgico desde 65. O palhaço de metedrina Bob Dylan excursionou pela Europa em 66 e passou a maior parte do tempo sem dormir. Syd Barrett liderou o Pink Floyd por clubes psicodélicos como o UFO. Histórias não faltam. A novidade, no entanto, era a polícia tentando acabar com a imunidade do mundo pop. Começou com Donovan Leitch, quando ele foi preso em 66. E continuou quando bateram à porta de Keith Richards, em Redlands.

O tabloide News of the World e o sargento Norman Pilcher uniram forças para armar furos jornalísticos ao prender astros do rock. Até 69, Semolina Pilcher iria prender dois Beatles e suas esposas. Mas naquela época, segundo o que contam, os Beatles eram protegidos pelo título que haviam recebido da Rainha, eles eram Membros do Império Britânico. A polícia então teria esperado George e Pattie Boyd sair da festa na casa de Keith Richards para prender os dois Stones. Verdade ou não, o fato é que mesmo enfrentando vários tipos de situações bizarras, os Beatles ainda se valiam da boa vontade geral. Eles seriam criticados um pouco mais tarde na história. Coube aos Stones pagar o pato. Em maio, foi a vez de Brian. E ele seria preso de novo, quase um ano depois.
















As penas impostas aos dois Stones foram severas. Três meses para Jagger e um ano para Richards. Apelações conseguiram que elas fossem indeferidas meses mais tarde. Como uma das consequências, a banda teve problemas para entrar nos EUA. Em casa, as gravações para o próximo disco também foram afetadas. Andrew Loog Oldham já havia saído. Brian estava cada vez mais fragilizado e logo saberia que sua namorada Anita Pallenberg e Keith Richards estavam envolvidos.

Os Rolling Stones voltaram de sua experimentação psicodélica com o single ‘Jumpin’ Jack Flash’, de 68, o primeiro após a prisão. O interessante é que Keith Richards teve que ser preso para que pudesse assumir o papel que historicamente sempre foi dele. O fora da lei havia nascido. Mick Jagger também estava diferente e seu papel logo cruzaria o diabo, em ‘Symphaty for the Devil’, do disco Beggar’s Banquet. Os Stones tinham gás novo e precisavam seguir em frente. Infelizmente, Brian Jones continuou complicando-se. No filme Crossfire Hurricane, de 2012, Mick Jagger disse que naquela época, ele e Keith usavam algumas drogas, mas Brian usava demais, e dos tipos errados. Ele não conseguia mais funcionar como músico. Anos antes, Brian havia falado em uma entrevista, “vamos ser honestos, o futuro como um Rolling Stone é muito incerto.” E então em junho de 69, Brian Jones foi tirado da banda que ele havia ajudado a criar.
Brian, Anita e Keith, por Michael Cooper
















Menos de um mês depois os Stones se preparavam para um grande concerto no Hyde Park, em Londres. Seria um aquecimento para a excursão americana que viria a seguir com Mick Taylor, um guitarrista inglês de apenas 20 anos. Dois dias antes do concerto, Brian foi encontrado afogado em sua piscina, dando final a uma história que já havia sido anunciada. A banda teve que endurecer para conseguir dar conta das 500 mil pessoas que foram ao parque ver o show, que a essa altura, havia virado uma elegia a Brian Jones.

No fim do ano os Stones finalmente se apresentam diante do público americano. A última vez havia sido em 66. The Rolling Stones American Tour 1969 aconteceu num momento em que os Beatles já estavam em vias de se separar e por conta disso, num óbvio declínio. A situação dos Stones era oposta mais uma vez. It’s a gas, gas, gas!
















A excursão terminou na terrível confusão causada em Altamont, onde uma pessoa morreu e várias outras apanharam. Diz-se que aí aconteceu o enterro da geração de Woodstock e dos geniais anos 60. Para os Stones, seria apenas mais uma das várias cicatrizes.

Quando os Beatles se separaram, os Stones assumiram o fardo de ser a banda mais importante do mundo. Nos anos que se seguiram eles trocaram novamente de guitarrista, foram presos algumas outras vezes e ainda quase morreram pelos excessos que cometeram, mas seguiram em frente e hoje, 50 anos desde a formação da banda, os Rolling Stones são a maior banda em atividade.

No vídeo abaixo, uma performance de 'The Last Time', o primeiro número 1 escrito por Jagger e Richards, em um concerto na Irlanda, 1965.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

# 2 - John Wesley Harding


De volta aos EUA após uma exaustiva excursão regada à eletricidade e vaias pela Europa e Austrália, Bob Dylan sofreu um grave acidente de moto. Assim que os primeiros rumores foram ouvidos, as especulações espalharam-se rapidamente: ele teria ficado paralisado do pescoço para baixo, teria tido lesões cerebrais, teria morrido. Ou ainda, o acidente havia sido uma armação para livrá-lo do vício em heroína. Quase 18 meses mais tarde ele encerrou a agonia do público com o lançamento de seu novo álbum, John Wesley Harding. Totalmente diferente do colorido flamboyant do rock psicodélico (que de certa forma havia se originado do próprio Dylan), o disco foi um golpe na música superproduzida, ajudou gente como os Beatles e os Stones a voltarem às suas origens, e mais uma vez influenciou a direção do rock.




















por Carlos E. Werlang

Numa entrevista à revista Rolling Stone em 2012, Dylan afirmou que os primeiros anos da década de 60 ainda pertenciam aos anos 50. “Até talvez 64, 65 [...] os novos anos 60 começaram a vir e por volta daquela época tomaram o controle até o final da década.” Muito dessa transição aconteceu por meio do trabalho árduo dos dois principais atos daquele tempo – os Beatles e Bob Dylan – mais os Stones, que em termos cronológicos apareceram instantes depois. Prova disso são os lançamentos de Highway 61 Revisited (agosto de 65), Rubber Soul (dezembro de 65) e Aftermath (abril de 66).

O que veio em seguida, uma mistura das letras surreais de Dylan, como ‘Sad Eyed Lady of the Lowlands’ e ‘Visions of Johanna’; a complexa sonoridade quase eletrônica e experimental dos Beatles com pitadas discretas de referências ilícitas – ‘She Said She Said’ e ‘Got To Get You Into My Life’ – e ainda a confirmação da liberação sexual de ‘Let’s Spend the Night Together’, de Keith Richards e Mick Jagger, juntou-se ao budismo e vagabundagem beat da década anterior e levou ao nascimento do que veio a ser o rock psicodélico.

No início de 66, agora acompanhado dos Hawks, Dylan saiu em sua Bob Dylan World Tour para mostrar ao público o seu novo som elétrico. Judas, traidor, falso, vendido! Essas foram algumas das acusações recebidas em meio a vaias e ameaças. “Onde está o poeta em você? O que aconteceu com sua consciência?” berrou um espectador. Completamente focado e certo do que fazia, Dylan seguiu em frente sem ceder às demandas do público, embora não tenha saído ileso. Foi nessa excursão que ele desenvolveu o hábito de consumir enormes quantidades de drogas prescritas.

Dylan e os Hawks
































Exaustos ao final da excursão, Dylan e os Hawks (em breve apenas The Band) retiraram-se para Woodstock, uma comunidade de artistas localizada perto de New York. Vale lembrar que isso aconteceu três bons anos antes do famoso festival.

Numa manhã de julho, sem dormir por dias, Dylan levava sua moto Triumph para reparos. Sua esposa Sara o seguia de carro. Novamente à Rolling Stone, ele disse, “Por um segundo eu me ceguei devido ao Sol [...] e eu meio que entrei em pânico. Eu freei, a roda traseira travou e eu saí voando.” Depois do acidente, pouquíssimo foi ouvido ou visto sobre Bob Dylan, apenas as mais fantásticas especulações. O fato é que quando ele efetivamente retornou, já não era mais, na definição de Allen Ginsberg, o “palhaço de metedrina”. A encarnação do groovy poeta elétrico de fala rápida havia ficado para trás. Logo, o público conheceria Bob Dylan, o pai de família que criava galinhas e tocava música country.
Dylan e sua Triumph
















Em 67, o mundo explodia em cores. A guerra do Vietnã seguia firme, mas o alto astral hippie contagiava todos no que foi chamado de ‘O Verão do Amor’. Os Beatles lançaram Sgt Pepper e os Stones Their Satanic Majesties Request (longe de ser uma cópia, como dizem). Havia grupos novos na onda. Pink Floyd, Jimi Hendrix e Doors gravaram seus discos de estreia. Bandas e artistas já estabelecidos, como Who, Beach Boys e Donovan, também deixavam sua impressão no novo som psicodélico. Londres deixou de ser o foco da cena e agora São Francisco era a nova Meca da música. Bob Dylan, entretanto, continuava em silêncio. E mesmo assim, sua posição de porta voz continuava indisputável.

Ao contrário do que se dizia, Bob Dylan não havia desistido da música. No mesmo ano de 67 ele a Band encontraram-se frequentemente em Woodstock, gravando uma coleção de canções que logo dariam origem ao que se acredita ser o primeiro bootleg do rock – oficialmente, estas canções só veriam a luz do dia na metade dos anos 70, com o nome de Basement Tapes. As relaxadas sessões com a Band ajudaram Dylan a voltar a escrever, a fazer conscientemente o que ele costumava fazer inconscientemente.

O acidente deixou Dylan seriamente ferido. A versão mais acreditada é a de que ele fraturou várias vértebras no pescoço. Ele quase morreu, e isso o fez reavaliar o tipo de vida que estava levando. “Eu provavelmente teria morrido se tivesse mantido o ritmo.” A vida familiar com Sara e os filhos que não paravam de nascer também o fizeram mudar de comportamento. Antes cínico e falador, agora Dylan era quieto, mas cordial.
Bob e Sara por Elliot Landy, 1968.














Nos meses finais de 67, Dylan voltou sem grande alarde a Nashville onde havia gravado seu último disco, quase 18 meses antes. Ao contrário da maratona de horas de Blonde on Blonde, as sessões foram rápidas e precisas, e a banda, enxuta (uma indicação de que algo incomum estava prestes a acontecer). Somente baixo e bateria – e um ocasional pedal steel – acompanharam o seu violão. As canções escolhidas nunca apareceram na coleção das Basement Tapes, tornando o caso ainda mais curioso. A volta de Dylan dos mortos estava preparada.

Então afinal, no Natal de 1967, chegou às lojas John Wesley Harding, o novo disco de Bob Dylan! A pedidos do próprio artista, a CBS não promoveu o disco e grande parte do público foi pega de surpresa. A começar pela capa, uma foto preta e branca de Dylan junto de dois bengalis e um carpinteiro, numa moldura marrom acinzentada; era totalmente oposta à estética colorida da época.

Outtakes da foto da capa






























De maneira alguma John Wesley Harding era uma extensão do trabalho que Dylan havia feito em sua trilogia elétrica. De fato, o disco tinha mais a ver com seus primeiros discos de baladas folk do que com rock. Ele ousou mudar o caminho outra vez e ir contra sua própria tendência, novamente deixando para trás um rastro de inconformados. Novas acusações, velhas palavras: traidor, vendido, falso. Quem ele pensava que era ao não dar respostas e apontar o caminho a ser seguido? Dylan não sentia ligação nenhuma às questões sociais da época, nem às pessoas que o pintavam como o novo Messias. Ainda assim, o disco rapidamente tornou-se o mais vendido de sua carreira até aquele momento.

E ainda havia as palavras. John Wesley Harding estava recheado de alegorias e parábolas bíblicas (‘All Along The Watchtower’, ‘I Dreamed I Saw St. Augustine’ e ‘The Wicked Messenger’); baladas simpáticas à causa dos maltrapilhos (‘Drifter’s Escape’ e ‘I Am A Lonesome Hobo’), foras da lei (‘John Wesley Harding’), desfavorecidos (‘Dear Landlord’ e ‘The Ballad of Frankie Lee and Judas Priest’) e imigrantes (‘I Pity The Poor Imigrant’). Entretanto, não é um disco de fácil assimilação, e talvez essa seja a razão pela qual ele quase nunca é mencionado nas listas de discos favoritos dos fãs de Bob Dylan. 

A verdade é que depois deste álbum, o rock psicodélico perderia força e se transformaria na bobagem do rock progressivo. Porém, quem estava mais atento sabia a direção a seguir. Semanas depois do lançamento, os Beatles tiveram o seu retiro ao sopé dos Himalaias. É famosa a história de que entre os poucos discos que foram levados, estava uma cópia de Harding, levada por George Harrison. Em Londres, gente como Mick Jagger e Eric Clapton possuíam cópias piratas das Basement Tapes. Desta vez, Bob Dylan influenciou os Beatles e Rolling Stones a voltarem às suas raízes, além de influenciar Eric Clapton a sair do Cream. Em breve, a tendência (não no sentido pejorativo da palavra) seria o country rock

Mais uma vez, parecia que Bob Dylan dialogava com seu tempo e logo muitos se voltariam para um estilo de vida mais familiar, introspectivo e tolerante. Mas não antes de Jimi Hendrix gravar sua própria versão de ‘All Along The Watchtower’, a trilha sonora apocalipticamente perfeita para o caos do final da década, uma vez que o colorido hippie era sufocado por marchas e protestos contra a guerra. Mais de 45 anos depois, John Wesley Harding permanece como o único de seu tipo, o símbolo do fim da extravagância e o início do autoexame. 

Por fim, existe um mito de que os Beatles estariam secretamente escondidos de ponta cabeça na capa. Para os mais curiosos, existem mais detalhes no Google.