sábado, 3 de maio de 2014

# 4 - A Transcendência Homem-Máquina de Ayrton Senna

O assunto Ayrton Senna não é exatamente uma unanimidade. A maioria das pessoas com quem conversei nos últimos dias não podia importar-se menos a respeito. Entre os mais entusiastas, os 20 anos de sua morte trazem memórias envoltas em nostalgia. O que não se pode discutir, entretanto, é o status de lenda que Ayrton Senna possui. E não é nada que tenha a ver com ufanismo patriota pintado pela Rede Globo, mas sim pela sua capacidade de atingir o ponto extremo de seus limites. Saiba mais sobre a vez em que Senna, segundo ele mesmo, experimentou um momento de transcendência dentro do cockpit.


por Carlos E. Werlang

Em um trecho do documentário Living in the Material World, dirigido por Martin Scorsese em 2011, o antigo piloto escocês Jackie Stewart tenta traçar um paralelo entre a sobrenatural habilidade dos sentidos superaguçados de um guitarrista como George Harrison e de um piloto de F-1. Ao longo dos anos, George mencionou algo similar em entrevistas de rádio, quando descrevia o sentimento que tinha ao ver seus amigos Ravi Shankar e Eric Clapton tocarem ao vivo.

Stewart disse, “Você anda muito rápido. Você está no limite absoluto dos pneus e da suspensão do carro, e você está lá bem na ponta do seu próprio limite, levando-o ao ponto mais extremo. Quando isso acontece, seus sentidos são muito fortes.” E depois continuou sobre a vez em que seus sentidos estavam tão exagerados e afiados, que em milissegundos ele teve a percepção de alguma coisa estava errada em um ponto da pista. Isso o levou a frear o carro e constatar que outro piloto havia saído da prova.

Este tipo de percepção parece ter sido sentida de um jeito bem esquisito pelo piloto mais sobrenatural que a F-1 já teve. E note que essa não é mais uma daquelas discussões sem fim para eleger quem era o melhor piloto do circo.

O Grande Prêmio de Mônaco, como a maioria sabe, é o mais charmoso entre todos os demais da temporada de F-1. Não é uma coincidência que seu maior vencedor ainda seja Ayrton Senna. Das dez corridas que fez em Monte Carlo, Senna venceu seis. O que pouca gente comenta, é que por muito pouco, ele quase ganhou outras duas vezes. A primeira quase vitória veio em seu ano de estreia, em 1984, numa prova que ficou gravada na história como “A Francesada”; Senna não teria muitas dificuldades em ultrapassar, debaixo de chuva, o líder Alain Prost, caso a prova não tivesse sido interrompida.

No início do mesmo ano, quando Ayrton Senna terminou a sua primeira prova, ele foi diretamente ao hospital. O esforço físico tinha sido demais para o então franzino piloto. Os anos a seguir viram a transformação de um piloto fracote e magricela em uma máquina física e mental. Seu poder de concentração foi raramente igualado na F-1. Sendo assim, quatro anos mais tarde, ele conseguiu o que muitos chamaram de “a volta perfeita”.

O palco era mais uma vez, as ruas de Monte Carlo, no principado de Mônaco. Senna ainda não era campeão mundial e corria pela primeira vez pela McLaren. Seu companheiro era outra lenda da Fórmula 1, Alain Prost. A complexidade da relação entre Senna e Prost não será discutida aqui, por ora basta dizer que superar Prost era o principal objetivo de Senna. E foi o que aconteceu durante a qualificação que definiria as posições do grid de largada.

Alain Prost havia sido o mais rápido em boa parte do fim de semana. A essa altura, já sendo bicampeão mundial, provavelmente era o favorito para conseguir a pole. Eis que Senna, ao final dos treinos, começa a fazer volta mais rápida atrás de volta mais rápida, batendo o recorde da pista a cada vez que cruzava a linha de chegada. Prost conta que era impossível de se acreditar. Mais tarde Prost contaria o que Senna disse à imprensa naquele dia, “que ele elevou-se acima do carro, e de cima observou como o carro reagia e então entendeu o que estava errado, voltou para o carro e correu a volta perfeita.” Algo que, segundo Prost, foi muito difícil de ouvir e entender.

Nas palavras do próprio Senna, o que aconteceu foi que, “Eu já estava na pole. Então, baixei meio segundo, e depois um segundo e continuei melhorando meu tempo. Eu continuei e continuei e continuei. De repente, eu estava a quase dois segundos de todos os pilotos, inclusive meu companheiro de equipe. Eu percebi que não mais dirigia o carro conscientemente. Eu estava dirigindo por instinto, estava em uma outra dimensão; como se estivesse em um túnel, o circuito todo era um túnel. Eu estava muito acima do limite mas era capaz de melhorar ainda mais... Então eu acordei e me dei conta de que estava em outro lugar. Imediatamente, eu diminuí, e voltei lentamente aos boxes, e encerrei o dia. Fiquei com medo porque estava muito acima do meu entendimento consciente.”












No dia seguinte, aconteceu de novo. Desde a largada, Senna havia disparado na frente e conseguiu abrir uma diferença de quase 1 minuto para seu companheiro Alain Prost. Preocupada com o que pudesse acontecer, a equipe transmitiu uma mensagem pelo rádio pedindo para Senna ir mais devagar, já que estava a pouco mais de 10 voltas do fim. Isso o desconcentrou e logo ele bateu na entrada de uma curva, deixando escapar mais uma oportunidade de vitória no principado.

Em uma entrevista à revista Playboy, em 1990, ele falou novamente sobre sua experiência. “A distinção entre o homem e a máquina deixou de existir, me fundi com o carro, viramos a mesma coisa.” E em outra entrevista, contou que “Naquele dia, eu disse para mim mesmo, ‘atingi meu máximo, não é possível ir além’, Eu nunca atingi essa sensação outra vez.”












Ayrton Senna ficará para sempre lembrado pela carreira vitoriosa e as atitudes que o fizeram um grande campeão, mas foi em uma derrota que ele experimentou a sensação única da transcendência piloto e máquina, uma história repleta de sutilezas.

Os vídeos abaixo mostram imagens preciosas e impressionantes de Ayrton Senna naquele final de semana em Mônaco, em 1988. O primeiro, de um documentário de 2011 que explora justamente o lado sobrenatural (na falta de outra palavra) do piloto. O segundo, uma grande homenagem feita pela equipe McLaren para os 20 anos de sua morte.