De volta aos EUA após uma exaustiva excursão regada à eletricidade
e vaias pela Europa e Austrália, Bob Dylan sofreu um grave acidente de moto. Assim que
os primeiros rumores foram ouvidos, as especulações espalharam-se rapidamente: ele teria ficado paralisado do pescoço para baixo, teria tido lesões cerebrais, teria morrido. Ou ainda, o
acidente havia sido uma armação para livrá-lo do vício em heroína. Quase 18
meses mais tarde ele encerrou a agonia do público com o lançamento de seu novo
álbum, John Wesley Harding. Totalmente diferente do colorido flamboyant
do rock psicodélico (que de certa forma havia se originado do próprio
Dylan), o disco foi um golpe na música superproduzida, ajudou gente como os
Beatles e os Stones a voltarem às suas origens, e mais uma vez influenciou a direção
do rock.
por Carlos E. Werlang
Numa entrevista à revista Rolling Stone em 2012, Dylan afirmou que
os primeiros anos da década de 60 ainda pertenciam aos anos 50. “Até
talvez 64, 65 [...] os novos anos 60 começaram a vir e por volta daquela
época tomaram o controle até o final da década.” Muito dessa transição aconteceu por meio do trabalho árduo dos dois
principais atos daquele tempo – os Beatles e Bob Dylan – mais os Stones, que em
termos cronológicos apareceram instantes depois. Prova disso são os lançamentos
de Highway 61 Revisited (agosto
de 65), Rubber Soul (dezembro de 65)
e Aftermath (abril de 66).
O que veio em seguida, uma mistura
das letras surreais de Dylan, como ‘Sad Eyed Lady of the Lowlands’ e ‘Visions
of Johanna’; a complexa sonoridade quase eletrônica e experimental dos Beatles
com pitadas discretas de referências ilícitas – ‘She Said She Said’ e ‘Got To
Get You Into My Life’ – e ainda a confirmação da liberação sexual de ‘Let’s Spend
the Night Together’, de Keith Richards e Mick Jagger, juntou-se ao budismo e
vagabundagem beat da década anterior
e levou ao nascimento do que veio a ser o rock psicodélico.
No início de 66, agora
acompanhado dos Hawks, Dylan saiu em
sua Bob Dylan World Tour para mostrar
ao público o seu novo som elétrico. Judas, traidor, falso, vendido! Essas foram
algumas das acusações recebidas em meio a vaias e ameaças. “Onde está o poeta
em você? O que aconteceu com sua consciência?” berrou um espectador.
Completamente focado e certo do que fazia, Dylan seguiu em frente sem ceder às
demandas do público, embora não tenha saído ileso. Foi nessa excursão que ele desenvolveu o hábito de consumir enormes quantidades de drogas
prescritas.
Exaustos ao final da excursão, Dylan e os Hawks (em breve apenas The Band) retiraram-se para Woodstock, uma comunidade de artistas localizada perto de New York. Vale lembrar que isso aconteceu três bons anos antes do famoso festival.
Numa manhã de julho, sem dormir
por dias, Dylan levava sua moto Triumph
para reparos. Sua esposa Sara o seguia de carro. Novamente à Rolling Stone, ele disse, “Por um
segundo eu me ceguei devido ao Sol [...] e eu meio que entrei em pânico. Eu
freei, a roda traseira travou e eu saí voando.” Depois do acidente, pouquíssimo
foi ouvido ou visto sobre Bob Dylan, apenas as mais fantásticas especulações. O
fato é que quando ele efetivamente retornou, já não era mais, na definição de
Allen Ginsberg, o “palhaço de metedrina”. A encarnação do groovy poeta elétrico de fala rápida havia ficado para trás. Logo,
o público conheceria Bob Dylan, o pai de família que criava galinhas e tocava música country.
Em 67, o mundo explodia em cores. A guerra do Vietnã seguia firme, mas o alto astral hippie contagiava todos no que foi chamado de ‘O Verão do Amor’. Os Beatles lançaram Sgt Pepper e os Stones Their Satanic Majesties Request (longe de ser uma cópia, como dizem). Havia grupos novos na onda. Pink Floyd, Jimi Hendrix e Doors gravaram seus discos de estreia. Bandas e artistas já estabelecidos, como Who, Beach Boys e Donovan, também deixavam sua impressão no novo som psicodélico. Londres deixou de ser o foco da cena e agora São Francisco era a nova Meca da música. Bob Dylan, entretanto, continuava em silêncio. E mesmo assim, sua posição de porta voz continuava indisputável.
Ao contrário do que se dizia, Bob
Dylan não havia desistido da música. No mesmo ano de 67 ele a Band encontraram-se frequentemente em Woodstock, gravando uma coleção de
canções que logo dariam origem ao que se acredita ser o primeiro bootleg do rock – oficialmente, estas
canções só veriam a luz do dia na metade dos anos 70, com o nome de Basement Tapes. As relaxadas sessões com
a Band ajudaram Dylan a voltar a
escrever, a fazer conscientemente o que ele costumava fazer inconscientemente.
O acidente deixou Dylan
seriamente ferido. A versão mais acreditada é a de que ele fraturou várias vértebras
no pescoço. Ele quase morreu, e isso o fez reavaliar o tipo de vida que estava
levando. “Eu provavelmente teria morrido se tivesse mantido o ritmo.” A vida familiar com Sara e os filhos que não paravam de nascer também o fizeram mudar de comportamento. Antes cínico e falador, agora Dylan era quieto, mas cordial.
Nos meses finais de 67, Dylan voltou sem grande alarde a Nashville onde havia gravado seu último disco, quase 18 meses antes. Ao contrário da maratona de horas de Blonde on Blonde, as sessões foram rápidas e precisas, e a banda, enxuta (uma indicação de que algo incomum estava prestes a acontecer). Somente baixo e bateria – e um ocasional pedal steel – acompanharam o seu violão. As canções escolhidas nunca apareceram na coleção das Basement Tapes, tornando o caso ainda mais curioso. A volta de Dylan dos mortos estava preparada.
Então afinal, no Natal de 1967,
chegou às lojas John Wesley Harding,
o novo disco de Bob Dylan! A pedidos do próprio artista, a CBS não promoveu o
disco e grande parte do público foi pega de surpresa. A começar pela capa, uma
foto preta e branca de Dylan junto de dois bengalis e um carpinteiro, numa
moldura marrom acinzentada; era totalmente oposta à estética colorida da época.
De maneira alguma John Wesley Harding era uma extensão do trabalho que Dylan havia feito em sua trilogia elétrica. De fato, o disco tinha mais a ver com seus primeiros discos de baladas folk do que com rock. Ele ousou mudar o caminho outra vez e ir contra sua própria tendência, novamente deixando para trás um rastro de inconformados. Novas acusações, velhas palavras: traidor, vendido, falso. Quem ele pensava que era ao não dar respostas e apontar o caminho a ser seguido? Dylan não sentia ligação nenhuma às questões sociais da época, nem às pessoas que o pintavam como o novo Messias. Ainda assim, o disco rapidamente tornou-se o mais vendido de sua carreira até aquele momento.
Outtakes da foto da capa |
De maneira alguma John Wesley Harding era uma extensão do trabalho que Dylan havia feito em sua trilogia elétrica. De fato, o disco tinha mais a ver com seus primeiros discos de baladas folk do que com rock. Ele ousou mudar o caminho outra vez e ir contra sua própria tendência, novamente deixando para trás um rastro de inconformados. Novas acusações, velhas palavras: traidor, vendido, falso. Quem ele pensava que era ao não dar respostas e apontar o caminho a ser seguido? Dylan não sentia ligação nenhuma às questões sociais da época, nem às pessoas que o pintavam como o novo Messias. Ainda assim, o disco rapidamente tornou-se o mais vendido de sua carreira até aquele momento.
E ainda havia as palavras. John Wesley Harding estava recheado de alegorias e parábolas
bíblicas (‘All Along The Watchtower’, ‘I Dreamed I Saw St. Augustine’ e ‘The
Wicked Messenger’); baladas simpáticas à causa dos maltrapilhos (‘Drifter’s Escape’
e ‘I Am A Lonesome Hobo’), foras da lei (‘John Wesley Harding’), desfavorecidos
(‘Dear Landlord’ e ‘The Ballad of Frankie Lee and Judas Priest’) e imigrantes (‘I
Pity The Poor Imigrant’). Entretanto, não é um disco de fácil assimilação, e
talvez essa seja a razão pela qual ele quase nunca é mencionado nas listas de discos favoritos
dos fãs de Bob Dylan.
A verdade é que depois deste
álbum, o rock psicodélico perderia força e se transformaria na bobagem do rock
progressivo. Porém, quem estava mais atento sabia a direção a seguir. Semanas
depois do lançamento, os Beatles tiveram o seu retiro ao sopé dos Himalaias. É
famosa a história de que entre os poucos discos que foram levados, estava uma
cópia de Harding, levada por George
Harrison. Em Londres, gente como Mick Jagger e Eric Clapton possuíam cópias
piratas das Basement Tapes. Desta vez, Bob Dylan
influenciou os Beatles e Rolling Stones a voltarem às suas raízes, além de
influenciar Eric Clapton a sair do Cream. Em breve, a tendência (não no sentido pejorativo da palavra) seria o country rock.
Mais uma vez, parecia
que Bob Dylan dialogava com seu tempo e logo muitos se voltariam para um estilo
de vida mais familiar, introspectivo e tolerante. Mas não antes de Jimi Hendrix gravar sua
própria versão de ‘All Along The Watchtower’, a trilha sonora apocalipticamente
perfeita para o caos do final da década, uma vez que o colorido hippie era sufocado por marchas e protestos contra a guerra. Mais de 45 anos depois, John Wesley Harding permanece como o único
de seu tipo, o símbolo do fim da extravagância e o início do autoexame.
Por fim, existe um mito de
que os Beatles estariam secretamente escondidos de ponta cabeça na capa. Para
os mais curiosos, existem mais detalhes no Google.