quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

# 2 - John Wesley Harding


De volta aos EUA após uma exaustiva excursão regada à eletricidade e vaias pela Europa e Austrália, Bob Dylan sofreu um grave acidente de moto. Assim que os primeiros rumores foram ouvidos, as especulações espalharam-se rapidamente: ele teria ficado paralisado do pescoço para baixo, teria tido lesões cerebrais, teria morrido. Ou ainda, o acidente havia sido uma armação para livrá-lo do vício em heroína. Quase 18 meses mais tarde ele encerrou a agonia do público com o lançamento de seu novo álbum, John Wesley Harding. Totalmente diferente do colorido flamboyant do rock psicodélico (que de certa forma havia se originado do próprio Dylan), o disco foi um golpe na música superproduzida, ajudou gente como os Beatles e os Stones a voltarem às suas origens, e mais uma vez influenciou a direção do rock.




















por Carlos E. Werlang

Numa entrevista à revista Rolling Stone em 2012, Dylan afirmou que os primeiros anos da década de 60 ainda pertenciam aos anos 50. “Até talvez 64, 65 [...] os novos anos 60 começaram a vir e por volta daquela época tomaram o controle até o final da década.” Muito dessa transição aconteceu por meio do trabalho árduo dos dois principais atos daquele tempo – os Beatles e Bob Dylan – mais os Stones, que em termos cronológicos apareceram instantes depois. Prova disso são os lançamentos de Highway 61 Revisited (agosto de 65), Rubber Soul (dezembro de 65) e Aftermath (abril de 66).

O que veio em seguida, uma mistura das letras surreais de Dylan, como ‘Sad Eyed Lady of the Lowlands’ e ‘Visions of Johanna’; a complexa sonoridade quase eletrônica e experimental dos Beatles com pitadas discretas de referências ilícitas – ‘She Said She Said’ e ‘Got To Get You Into My Life’ – e ainda a confirmação da liberação sexual de ‘Let’s Spend the Night Together’, de Keith Richards e Mick Jagger, juntou-se ao budismo e vagabundagem beat da década anterior e levou ao nascimento do que veio a ser o rock psicodélico.

No início de 66, agora acompanhado dos Hawks, Dylan saiu em sua Bob Dylan World Tour para mostrar ao público o seu novo som elétrico. Judas, traidor, falso, vendido! Essas foram algumas das acusações recebidas em meio a vaias e ameaças. “Onde está o poeta em você? O que aconteceu com sua consciência?” berrou um espectador. Completamente focado e certo do que fazia, Dylan seguiu em frente sem ceder às demandas do público, embora não tenha saído ileso. Foi nessa excursão que ele desenvolveu o hábito de consumir enormes quantidades de drogas prescritas.

Dylan e os Hawks
































Exaustos ao final da excursão, Dylan e os Hawks (em breve apenas The Band) retiraram-se para Woodstock, uma comunidade de artistas localizada perto de New York. Vale lembrar que isso aconteceu três bons anos antes do famoso festival.

Numa manhã de julho, sem dormir por dias, Dylan levava sua moto Triumph para reparos. Sua esposa Sara o seguia de carro. Novamente à Rolling Stone, ele disse, “Por um segundo eu me ceguei devido ao Sol [...] e eu meio que entrei em pânico. Eu freei, a roda traseira travou e eu saí voando.” Depois do acidente, pouquíssimo foi ouvido ou visto sobre Bob Dylan, apenas as mais fantásticas especulações. O fato é que quando ele efetivamente retornou, já não era mais, na definição de Allen Ginsberg, o “palhaço de metedrina”. A encarnação do groovy poeta elétrico de fala rápida havia ficado para trás. Logo, o público conheceria Bob Dylan, o pai de família que criava galinhas e tocava música country.
Dylan e sua Triumph
















Em 67, o mundo explodia em cores. A guerra do Vietnã seguia firme, mas o alto astral hippie contagiava todos no que foi chamado de ‘O Verão do Amor’. Os Beatles lançaram Sgt Pepper e os Stones Their Satanic Majesties Request (longe de ser uma cópia, como dizem). Havia grupos novos na onda. Pink Floyd, Jimi Hendrix e Doors gravaram seus discos de estreia. Bandas e artistas já estabelecidos, como Who, Beach Boys e Donovan, também deixavam sua impressão no novo som psicodélico. Londres deixou de ser o foco da cena e agora São Francisco era a nova Meca da música. Bob Dylan, entretanto, continuava em silêncio. E mesmo assim, sua posição de porta voz continuava indisputável.

Ao contrário do que se dizia, Bob Dylan não havia desistido da música. No mesmo ano de 67 ele a Band encontraram-se frequentemente em Woodstock, gravando uma coleção de canções que logo dariam origem ao que se acredita ser o primeiro bootleg do rock – oficialmente, estas canções só veriam a luz do dia na metade dos anos 70, com o nome de Basement Tapes. As relaxadas sessões com a Band ajudaram Dylan a voltar a escrever, a fazer conscientemente o que ele costumava fazer inconscientemente.

O acidente deixou Dylan seriamente ferido. A versão mais acreditada é a de que ele fraturou várias vértebras no pescoço. Ele quase morreu, e isso o fez reavaliar o tipo de vida que estava levando. “Eu provavelmente teria morrido se tivesse mantido o ritmo.” A vida familiar com Sara e os filhos que não paravam de nascer também o fizeram mudar de comportamento. Antes cínico e falador, agora Dylan era quieto, mas cordial.
Bob e Sara por Elliot Landy, 1968.














Nos meses finais de 67, Dylan voltou sem grande alarde a Nashville onde havia gravado seu último disco, quase 18 meses antes. Ao contrário da maratona de horas de Blonde on Blonde, as sessões foram rápidas e precisas, e a banda, enxuta (uma indicação de que algo incomum estava prestes a acontecer). Somente baixo e bateria – e um ocasional pedal steel – acompanharam o seu violão. As canções escolhidas nunca apareceram na coleção das Basement Tapes, tornando o caso ainda mais curioso. A volta de Dylan dos mortos estava preparada.

Então afinal, no Natal de 1967, chegou às lojas John Wesley Harding, o novo disco de Bob Dylan! A pedidos do próprio artista, a CBS não promoveu o disco e grande parte do público foi pega de surpresa. A começar pela capa, uma foto preta e branca de Dylan junto de dois bengalis e um carpinteiro, numa moldura marrom acinzentada; era totalmente oposta à estética colorida da época.

Outtakes da foto da capa






























De maneira alguma John Wesley Harding era uma extensão do trabalho que Dylan havia feito em sua trilogia elétrica. De fato, o disco tinha mais a ver com seus primeiros discos de baladas folk do que com rock. Ele ousou mudar o caminho outra vez e ir contra sua própria tendência, novamente deixando para trás um rastro de inconformados. Novas acusações, velhas palavras: traidor, vendido, falso. Quem ele pensava que era ao não dar respostas e apontar o caminho a ser seguido? Dylan não sentia ligação nenhuma às questões sociais da época, nem às pessoas que o pintavam como o novo Messias. Ainda assim, o disco rapidamente tornou-se o mais vendido de sua carreira até aquele momento.

E ainda havia as palavras. John Wesley Harding estava recheado de alegorias e parábolas bíblicas (‘All Along The Watchtower’, ‘I Dreamed I Saw St. Augustine’ e ‘The Wicked Messenger’); baladas simpáticas à causa dos maltrapilhos (‘Drifter’s Escape’ e ‘I Am A Lonesome Hobo’), foras da lei (‘John Wesley Harding’), desfavorecidos (‘Dear Landlord’ e ‘The Ballad of Frankie Lee and Judas Priest’) e imigrantes (‘I Pity The Poor Imigrant’). Entretanto, não é um disco de fácil assimilação, e talvez essa seja a razão pela qual ele quase nunca é mencionado nas listas de discos favoritos dos fãs de Bob Dylan. 

A verdade é que depois deste álbum, o rock psicodélico perderia força e se transformaria na bobagem do rock progressivo. Porém, quem estava mais atento sabia a direção a seguir. Semanas depois do lançamento, os Beatles tiveram o seu retiro ao sopé dos Himalaias. É famosa a história de que entre os poucos discos que foram levados, estava uma cópia de Harding, levada por George Harrison. Em Londres, gente como Mick Jagger e Eric Clapton possuíam cópias piratas das Basement Tapes. Desta vez, Bob Dylan influenciou os Beatles e Rolling Stones a voltarem às suas raízes, além de influenciar Eric Clapton a sair do Cream. Em breve, a tendência (não no sentido pejorativo da palavra) seria o country rock

Mais uma vez, parecia que Bob Dylan dialogava com seu tempo e logo muitos se voltariam para um estilo de vida mais familiar, introspectivo e tolerante. Mas não antes de Jimi Hendrix gravar sua própria versão de ‘All Along The Watchtower’, a trilha sonora apocalipticamente perfeita para o caos do final da década, uma vez que o colorido hippie era sufocado por marchas e protestos contra a guerra. Mais de 45 anos depois, John Wesley Harding permanece como o único de seu tipo, o símbolo do fim da extravagância e o início do autoexame. 

Por fim, existe um mito de que os Beatles estariam secretamente escondidos de ponta cabeça na capa. Para os mais curiosos, existem mais detalhes no Google.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

# 1 - Les Beatles

No embalo das comemorações dos 50 anos da primeira visita dos Beatles aos Estados Unidos pouco é sabido ou lembrado que menos de um mês antes eles haviam passado uma temporada de três semanas em Paris. Os franceses foram os últimos a testemunhar o grupo antes do pandemônio que se sucedeu à conquista da América. Ao contrário do que havia acontecido em outros lugares da Europa, seu sucesso não foi instantâneo. Pela última vez, os Beatles puderam aproveitar relativo anonimato nas ruas da capital francesa, que ainda os viu compondo um novo single e descobrindo a música de um jovem bardo americano.

Posando para a revista LIFE (foto de Terence Spencer)




















por Carlos E. Werlang

Há exatos 50 anos, no dia 5 de fevereiro de 1964, os Beatles retornaram a Londres depois de terem ficado 22 dias na França. Dois dias mais tarde, eles voaram à New York pela primeira vez. O que aconteceu a seguir foi tão sem precedentes que a estada em Paris quase sempre é eclipsada. Mas como de costume, ela foi marcada por diversos fatos significantes.

É importante destacar a quantidade e a rapidez do trabalho da banda nos anos iniciais de seu contrato com a EMI. Entre o fim de dezembro e o início de janeiro de 64, os Beatles apresentaram-se em 16 noites no The Beatles Christmas Show, uma peça teatral de variedades concebida por Brian Epstein. Apenas três dias depois, em 14 de fevereiro, John Lennon, Paul McCartney e George Harrison, desembarcaram no aeroporto Le Bourget, acompanhados de Brian Epstein, Neil Aspinall e outras pessoas da imprensa inglesa. Ringo Starr juntou-se a eles somente no dia seguinte.

Os Beatles menos Ringo nas ruas de Paris

Eles ficaram hospedados no luxuoso hotel George V, na Champs-Elysées. Segundo George, essa foi a primeira vez em que ficaram num hotel tão grande, com enormes suítes e grandes banheiros de mármore. John e Paul já sofriam a pressão de compor canções para seu primeiro filme e ainda para outros artistas. Para isso um piano foi trazido até a suíte.


















Os Beatles e Epstein relaxando na suíte (foto de Harry Benson)

















O primeiro show aconteceu no Cinéma Cyrano; foi um aquecimento para a abertura da temporada. Todos os demais aconteceram no Olympia Theater, ao longo de 18 dias. Em geral os Beatles tocavam 2 shows por dia, embora em algumas ocasiões eles tenham tocado até 3 vezes. Entre os atos que também dividiam o palco estavam o americano Trini Lopez e a francesa Sylvie Vartan.

Acostumados ao sucesso instantâneo, os Beatles tiveram uma experiência diferente quando tocaram o primeiro show da noite. A plateia era composta de elegantes pessoas mais velhas dispostas a aproveitar o que Paris tinha de melhor para oferecer em termos de entretenimento. Um grande contraste com o show da matinê, quando a plateia era formada de jovens entusiasmados que esgotaram os ingressos. Ao menos nos primeiros dias, as expectativas de encontrarem garotas francesas do tipo de Brigitte Bardot foram frustradas.


Os Beatles e Sylvie Vartan



























Em geral, a apresentação da tarde era mais curta do que a da noite, e os números executados eram ‘From Me To You’, ‘Roll Over Beethoven’, ‘I Saw Her Standing There’, ‘She Loves You’, ‘This Boy’, ‘Boys’, ‘I Want To Hold Your Hand’, ‘Twist and Shout’ e ‘Long Tall Sally’. A essa altura, os Beatles já tinham conseguido fazer três dos seus singles chegarem ao topo das paradas britânicas, mas falhavam em repetir o mesmo nos EUA. A história mudou quando a Capitol entrou no jogo.

Selos de menor importância já haviam lançado singles dos Beatles na América, mas como não houve promoção em cima das canções, nenhuma delas conseguiu entrar nas paradas. Com todo o sucesso se espalhando pela Europa, os EUA não podiam mais ignorar a mania. Um dos primeiros a se impressionar foi o apresentador de TV, Ed Sullivan. Ele havia visto a beatlemania com os próprios olhos numa passagem por Londres e conseguiu apresentações para o grupo no início de fevereiro. Quando finalmente a Capitol decidiu lançar ‘I Want To Hold Your Hand’, não teve mais volta.

Ainda em um dos primeiros dias em Paris, Brian Epstein os recebeu de volta ao George V com um telegrama vindo da Capitol. Eles haviam conseguido o tão suado número 1 das paradas americanas! As próximas semanas tiveram os Beatles em estado de êxtase preparando-se para a grande conquista. Todos eles sabiam muito bem da importância do que estava por vir.

Eleanor Bron ou uma garçonete?




















Mas ainda havia Paris e eles continuavam com o jogo rápido. Através de um DJ francês, Paul conseguiu a cópia de um álbum cujo artista ele já havia ouvido o nome repetidamente. O disco em questão era nada menos que The Freewheelin’ Bob Dylan. Um dos pontos altos da viagem, e de acordo com John, “Nós o levamos de volta ao hotel e pelo resto da nossa estada de três semanas em Paris, não paramos de tocá-lo. Todos nós ficamos malucos por Dylan.”

The Freewheelin' Bob Dylan















Duas importantes adições ao grupo aconteceram nos dias seguintes. Derek Taylor havia começado a trabalhar com George em uma coluna para o Daily Express, e assim, juntou-se a eles. Enquanto John e Paul ficavam no hotel compondo, George e Derek saíam pelas ruas de Paris para, segundo George, “fazer coisas francesas,” como ir à Torre Eiffel e boates. Os anos a seguir viram Derek envolvido com os Beatles até sua morte, em 1997. Mas foi nesta viagem em que John abriu a guarda e iniciou uma amizade com Taylor.

A outra pessoa a juntar-se a equipe dos Beatles foi o produtor George Martin. A gravadora alemã deixou claro que a banda somente faria sucesso na Alemanha cantando em alemão. Por isso, Martin voou até Paris para gravar versões de ‘I Want To Hold Your Hand’ e ‘She Loves You’ em alemão. Pela primeira vez desde que havia contratado os Beatles, eles não cumpriram o compromisso. Depois de uma conversa com Neil Aspinall, um furioso Martin foi até o hotel, só para encontrar uma comédia Beatle e ter que cair na risada – eles achavam ridículo ter de cantar em alemão.

Com a ajuda de um tradutor dois dias mais tarde, em 29 de janeiro, eles gravaram as versões ‘Komm, Gib Mir Deine Hand’ e ‘Sie Liebe Dich’. O fato interessante desta história é que para ‘Sie Liebe Dich’, eles  tiveram que regravar a música, gerando diferenças da versão original em inglês.

Nas mesmas sessões, acontecidas na EMI francesa (a única do conjunto fora da Inglaterra, uma vez que ‘The Inner Light’, gravada em 68 na Índia só teve George presente), mais uma canção foi testada. Paul a havia escrito no piano do hotel e a chamou de ‘Can’t Buy Me Love’. Embora ela ainda tenha sido modificada no mês seguinte, em Londres, ela estabeleceu mais recordes quando também chegou ao topo das paradas, em abril. Com ela, os Beatles monopolizaram as primeiras cinco posições das paradas.

A temporada na França é mais conhecida pelo telegrama recebido por Epstein, mas além de significar um último respiro antes da loucura da beatlemania, foi a única vez – com as exceções de Liverpool e Hamburgo – que os Beatles tocaram tanto tempo na mesma casa, mais de 30 vezes.

Os dois vídeos a seguir são do dia 16 de janeiro. No canal 'TheBeatlesConcerts' do Youtube é possível encontrar os dois shows completos.